O Agrupamento de Escolas Gil Vicente, na Graça, tornou-se notícia depois de ser o primeiro no país a avançar com a interdição do uso de telemóveis por parte dos alunos em todo o recinto escolar. Para justificar a medida, o Agrupamento publicou um documento intitulado “Dez argumentos para a interdição dos telemóveis no Agrupamento de Escolas Gil Vicente”. O documento é público e sustenta-se em experiências levadas a cabo em diversos países e em crescentes alertas dos “especialistas”.
Sem pretender tomar parte de uma discussão que – ainda – não me diz respeito, deixo aqui um contraponto de dez argumentos e, sobretudo, as razões para as diferenças de contexto entre as escolas do centro de Lisboa e as escolas de Almeirim. Assim, o leitor pode decidir se se sente mais convencido pelas razões de uma comunidade escolar que, depois de uma discussão alargada, chegou a um amplo consenso ou a de um indivíduo que não tem quaisquer conhecimentos sobre pedagogia infantojuvenil, nem tem nenhum encarregando em idade escolar.
1. A iniciativa no AEGV partiu dos pais. A questão surgiu no pós-pandemia e na necessidade de inverter o padrão de socialização digital que se tinha estabelecido nesse período. Daí até aqui foi tido um amplo debate interno na escola preparando todos os intervenientes para esta medida. Em Almeirim esta medida surge como uma imposição no arranque de um novo ano letivo, transferindo a discussão para as redes sociais (curiosamente não as do agrupamento) onde se leem opiniões de pais, professores, advogados, psicólogos, médicos e dirigentes associativos que deveriam ser tidas, ponderadas e acomodadas à anteriori.
2. Carlos Moedas não foi embaixador da medida. É verdade que todas as decisões que tomamos enquanto comunidade são políticas, mas isso não significa que todas elas devem ter interferência política. Uma escola pública tem uma relação umbilical com o poder local e, sobretudo por isso, deve ser sempre respeitada a autonomia pedagógica das escolas, livrando a sua ação de qualquer forma de ingerência, pressão ou coação.
3. O perigo do supetão. No lado dos que se colocam a favor da medida, tenho lido muitas opiniões como “no meu tempo também não havia telemóveis”. Este argumento é assustador porque as pessoas que recorrem a ele frequentaram o secundário, maioritariamente, nos anos 90. É verdade que não havia telemóveis, mas havia o cigarro atrás do bloco, a garrafa de vodka nas visitas de estudo ou a substância risível na hora de almoço. Pode até haver quem se acerque deste argumento para defender dos malefícios do telemóvel o filho concebido no horário escolar. E bem…a escola serve para preparar o futuro!
Isto para dizer que, em determinadas idades, a proibição tem sempre um efeito perverso em relação ao objetivo pretendido. Não é por acaso que o logótipo da apple é uma maçã com uma dentada. Jobs e Wozniak foram visionários ao ponto de antecipar que o iPhone ia ser um fruto proibido.
4. O contexto importa. O contexto socioeconómico, cultural e pedagógico em que está inserido o AEGV é substancialmente diferente do contexto do AEA. As escolas da Graça têm uma Orquestra, um Clube de Ciência Viva, uma Revista e um clube de teatro na própria escola. Têm nas suas bibliotecas o seu ex-libris,têm parcerias com o Instituto Superior Técnico, os Museus do Aljube e do Fado, o Teatro D. Maria II e o Instituto Camões, entre (muitos) outros. Já o AEA identifica como oportunidades no seu projeto educativo o relacionamento com a autarquia, com a associação de pais, com o centro de formação da Lezíria do Tejo e com as forças de segurança.
É o que há.
5. O objetivo escondido. Depois de ler o ponto anterior certamente estará a pensar que a C+S Gil Vicente é uma ótima escola. E é, com tamanhas potencialidades só pode ser, mas o implacável ranking das escolas não concorda e a Gil Vicente todos os anos luta para entrar no top-500 (a ESMA foi a 170ª do ranking em 2023). Na caracterização da comunidade educativa está a razão para este fator. 22% dos discentes são estrangeiros, provenientes de 34 nacionalidades diferentes, incluindo no plano curricular a disciplina “PLA – Português Língua de Acolhimento”. Na verdade, os dez argumentos do AEGV podiam ser substituídos apenas por um: não conseguimos ter resultados enquanto não cortarmos parcialmente o contacto que os alunos têm à sua comunidade nativa.
Em contraponto, o colégio privado que lidera o ranking (Colégio Efanor) apenas restringe a utilização dos telemóveis nas aulas e outras atividades formativas. E se há instituição com recursos didático-pedagógicos suficientes e possíveis para avançar para a interdição total é o Colégio Efanor.
6. A medida não tem o mesmo impacto para todos. Aqui não precisarei de desenvolver muito. O impedimento da utilização não limita da mesma forma os alunos da cidade, grande parte deixados e recolhidos à porta da escola pelos pais, e aqueles que diariamente têm de apanhar autocarros que, por vezes, perdem, têm de comprar material escolar requestado com pouco tempo de antecedência e que têm de almoçar na escola.
7. Não atende à individualidade do aluno. No meio escolar é comum fazer-se a consideração que é necessário “nivelar por baixo” para não deixar nenhum aluno para trás. Por trás desta consideração está a assunção que a escola pública se vê na contingência de fazer um trabalho direcionado para os alunos do quartil mais baixo, deixando os melhores alunos entregues a si próprios ou, na esmagadora maioria dos casos, a explicações dadas por professores que as utilizam para pôr em prática métodos de ensino que não podem pôr no contexto de sala de aula.
Esta medida atende precisamente a esse princípio de responder ao uso irresponsável de telemóveis em prejuízo dos alunos que já desenvolveram um elevado sentido de responsabilidade. Meter numa redoma indivíduos prestes a emanciparem-se a caminho do ensino superior é um erro que se vai pagar mais tarde.
8. As políticas contra comportamentos aditivos não proíbem. Portugal é um exemplo em muito poucas áreas, mas no combate à toxicodependência é um case study estando em primeiro lugar nos indicadores considerados neste domínio. A estratégia, inicialmente muito criticada, incluiu troca gratuita de seringas, despenalização do consumo, tratamentos com metadona e criação de salas de chuto. Esta estratégia foi bem-sucedida. Nos anos 20, Woodrow Wilson instituiu nos EUA a Lei Seca que vigorou durante 13 anos. Esse período produziu vários milionários, um deles chamava-se Al Capone. Esta estratégia foi extremamente mal-sucedida.
Aqui volto aos pontos 3, 4 e 7 para questionar se o meio é o mais ajustado para chegar ao fim desejado.
Está perfeitamente tipificado que o uso exagerado de telemóveis em jovens (ou melhor escrevendo, a relação doentia com as redes sociais) promove problemas de ansiedade e depressão. Mas é desta forma que estes problemas são resolvidos? Não seria mais útil identificar, enquadrar e encaminhar comportamentos manifestantes dessas perturbações no lugar de chutar o problema para a casa de cada um onde, muitas vezes, o agregado familiar não está tão alerta por impreparação, desatenção ou negligência?
9. A inclusão como via para a exclusão. Se a interdição do uso de telemóveis, tablets e smartwatchs é discutível, a nota distribuída relativa à proposta aprovada em Conselho Geral é absolutamente inaceitável, nomeadamente onde refere que “no pátio/recreio, a utilização dos equipamentos por parte de alunos do secundário, deve estar condicionada a comunicação, via voz”, prevendo-se a exceção para alunos que sofram de diabetes, mas não havendo qualquer exceção prevista para alunos que sofram de mudez ou afonia.
10. O aluno deixa de ser um influencer gastronómico. Deixei o mais importante para o fim. Sem telemóvel os estudantes deixam de poder fotografar os almoços de fazer cobiça ao Isaltino Morais!
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